terça-feira, 4 de setembro de 2007

ARREPENDIMENTO MATA!


Este é um conto de ficção cientifica (e eu não gosto de ficção cientifica), mas tive que escrever para participar de um concurso (obviamente fiz do meu jeito, você encontra semelhança com meus outros textos... incluindo um sacaneamento básico ao McDonald´s), então escrevi uma história que se passa no futuro... um futuro onde não existe mais oxigênio puro e gratuito, e que “arrependimento” mata... sim, exatamente, o sentimento de arrependimento, mata!
Consegue imaginar tamanha viagem? Eu consegui... e fiquei com medo... hehehe!


Leonel estava em casa passando suas fotos digitais para o seu Laptop G-2080 (a grande novidade do ano), a cada foto visualizada, sentia-se um velho, mesmo nunca tendo apresentado um fio de cabelo branco nos 30 anos vividos. Sentiu uma saudade ao ver a foto dos seus pais (mortos há quase 10 anos)... ficou feliz ao ver a foto de Toniolo, seu amigo (maluco) de infância (que sempre foi uma pessoa fora do comum, uma alegria para qualquer ocasião... exceto quando tentou estuprar a Larinha – namoradinha de Leonel – dentro do fusca 77 do seu pai)... até que surgiu na tela, a foto de Rebeca, sorrindo, agarrada ao seu pescoço, ambos com uma expressão apaixonada. Ele ficou alguns minutos observando a foto, até que começou a sentir a mesma falta de ar, rotineira. Correu em direção do armário do quarto, local onde ele guardava os medicamentos de emergência. Tomou 3 comprimidos de Tymo-R 100 mg, então aos poucos foi voltando ao normal. Ao colocar o frasco de comprimidos de volta na gaveta, percebeu ser o último, estava chegando a hora de ter que sair de casa para comprar mais. Sentou-se de volta em frente ao laptop e sem olhar muito, deletou a foto de rebeca. Foi até uma pasta chamada “Rê Amor”, e deletou a pasta também. Levantou-se, caminhou até o Arnew e regulou o aparelho na posição Amazônia. Ainda não estava muito familiarizado com o novo aparelho, seu antigo Arnew, apenas purificava o ar do ambiente, de forma que ficava possível a respiração, porém, o cheiro da poluição ainda dominava o local, não havia como purificar odores. O novo Arnew, desenvolvido por uma empresa alemã, trazia uma excelente novidade, 10 tipos de ares diferentes (assim como Amazônia, África do Sul, Groelândia, Nova Zelândia...), semelhantes ao ar que existia nesses lugares há 100 anos atrás, quando podia-se respirar na rua tranqüilamente sem auxilio dos Arnew´s, nem os Oxpod´s (respiradores portáteis).
Leonel estava sentado no vaso sanitário, enquanto ouvia a televisão do box (única tv da casa, já que Leonel só tinha o habito de ver tv no banheiro, pois depois que ela ficou inteiramente interativa, perdeu toda a graça). De repente, uma notícia corriqueira prende a atenção dele: O novo Papa é encontrado morto! Com este, já eram 3 Papas mortos em menos de 1 ano, assim chegaria ao ponto que ninguém mais iria querer ocupar este cargo da igreja católica. Os 3 Papas haviam apresentado o mesmo resultado na autopsia digital, morte por arrependimento, a mais moderna epidemia mundial. Depois que Dan Nikaheltz – renomado cientista – descobriu a cura da AIDS em 2027, o mundo voltou a entrar em pânico, anos mais tarde, quando ocorreu o fenômeno Delety: milhares de pessoas apareciam mortas de um dia para o outro, sem nenhuma explicação. Depois de muitos estudos, cientistas desvendaram o fenômeno, que passou a ser chamado de Efeito Arrependimento, ou seja, a velha frase “se arrependimento matasse” havia virado uma cruel realidade. O mundo teve que se adaptar aos novos fatos, nada voltaria a ser como era antes, instituições importantes como o casamento haviam sido banidas, pois eram inúmeros os casos de casais que morriam em apenas 3 meses de casamento, o simples ato do matrimonio já estava sendo considerado um tipo de suicídio, até mesmo pelos 4 poderes. Começa com um pequeno sintoma de arrependimento, causa uma falta de ar que vai acelerando até parar o coração, igual a que Leonel acabou de sentir a pouco quando viu a foto de Rebeca e lembrou-se de que a largou um dia antes do casamento para voltar para uma ex namorada de infância (Laura, “Larinha”), levando Rebeca ao suicídio. Ta certo que naquela época, o homem ainda não sofria desse mal, então podia tomar decisões por impulsos, arrependimento era apenas um sentimento que servia como um aprendizado, só isso. Os próprios pais de Leonel foram vítimas desse mal, pois o velho Egidio (seu pai) morreu de arrependimento ao ter traído a dona Alzira (mãe de Leonel) com Diva, a empregada da vizinha (uma mulher vulgar e asquerosa), morreu dois segundos depois de ejacular na boca dela (no bigodinho bagaceiro, pra ser mais exato), e dona Alzira, logo após a morte do marido, pensando que o arrependimento que havia causado a morte dele fosse o fato de ter casado com ela, morreu de arrependimento por não ter fugido com Zezé (um argentino, trapezista de um circo que ficou uma semana na sua cidade natal) quando ainda era uma adolescente e estava apaixonada pelo rapaz (seu primeiro homem), mas não teve coragem de ir embora com ele, contra a vontade de seu pai Sabino (avô de Leonel, antigo dono da banca de jogo-de-bicho da cidade de Cachorro Molhado) e acabou casando com Egidio, que na época era um capacho do senhor Sabino. Leonel terminou seus “afazeres” fisiológicos, constatou a falta de Yeder Higiênico (substituto do antigo “papel”), sendo obrigado a ir direto para o banho.
No dia seguinte, Leonel dedicou-se toda a manhã em colocar música a letra que havia escrito há meses, porém, por falta de tempo e vontade, até hoje continuava apenas no Word3d. Arrependeu-se um pouco de algumas frases da letra, corrigindo rapidamente, sem dar tempo ao mal estar e a falta de ar.
As 15 horas, alguém toca a sua campainha, Leonel olha para o monitor da porta e percebe um homem com um capacete verde limão (com uma ilustração do rosto de Zé Pequeno, o popular bandido do antigo filme “Cidade de Deus”), ele abre a mesma, pois sabia que seria difícil ter dois homens de capacete com uma cor tão ridícula na mesma cidade, tratava-se de Nestor, seu amigo e ex sócio (há anos eles tinham uma locadora de Jota Gindru´s, até surgir o Jota Roots e dominar o mercado). Nestor entrou, tirou seu capacete de Oxpod e respirou profundamente o bom e velho ar da Amazônia particular de Leonel.

- Rapaz! Quanto tempo?!

Realmente fazia tempo que Nestor não aparecia, e Leonel não costumava sair de casa, pois do jeito que o mundo estava diferente, certamente poderia se arrepender depois.

- Pensei que tu até já tinha morrido!

Era comum ouvir esta frase, pois haviam mais pessoas morrendo do que nascendo.

- Quase morro todos os dias, mas estou vivo, ainda bem. – respondeu Leonel, orgulhoso por estar vivo.
- Ta difícil pra todo mundo, não é fácil, ta todo mundo morrendo, ontem morreu 5 pessoas lá no meu prédio, hoje já morreu 2 (isso até a hora que sai de casa), agora, no metrô aéreo que peguei ate aqui, duas pessoas morreram, duas que estavam de pé...
- Eu sei, é o arrependimento de “por que eu não esperei o próximo trêm?”...
- É verdade – rindo enquanto fala – isso acontece direto!
- Mas então, me conta, como estão os negócios? Quando vai abrir a tua lanchonete?
- Tu nem sabe, deu pane nos meus planos.
- O que foi?
- Tu sabe que eu tava motivado a colocar uma lanchonete devido ao fechamento da rede de McDonald´s...
- Sei, os donos da rede se arrependeram e tudo mais, eu sei...
- Só que agora, várias industrias, vendo o que aconteceu com McDonald´s, fecharam as fábricas, recusam-se a continuar produzindo certos alimentos e condimentos, tipo catchup, mostarda, hambúrguer, salsicha... os caras enlouqueceram, estão com medo do arrependimento futuro...
- Eles não deixam de ter razão Nestor, é óbvio que a longo prazo, perceberão o mal que seus produtos fazem ao ser humano e ao planeta (o pouco de natureza que ainda existe), e acabarão se arrependendo, isso é uma coisa certa.
- Pois é, vou ter que investir em outra coisa, só não sei no que.

Ambos sabiam que o mercado farmacêutico era o único e certeiro no momento, pois ninguém poderia viver sem Tymo-R, porém, precisavam de milhões pra entrar nele, o que estava fora de cogitação, já que Leonel era um músico fracassado (ele não achava isso, caso contrário já estaria morto) e Nestor, um talentoso vendedor (mas atualmente não conseguia nem vender seu peixe, pois estava desempregado há anos).
Passaram-se algumas horas, a segunda garrafa de vinho já estava pela metade e Nestor ainda não tinha coragem de falar o verdadeiro motivo que havia lhe levado até ali.

- O que você quer me falar afinal?
- Tudo bem, não vou mais enrolar. Você lembra do Marenco?
- O meu colega de neuro-linguística?
- Esse mesmo. Tu sabe que ele aproveitou o sucesso da clínica de PNLD (programação neuro-linguística digital) e colocou um banco com um sócio americano?
- Sei, o único banco no planeta protegido de arrependimentos por causa das técnicas psicológicas...
- Quase isso, não são bem técnicas psicológicas, mas é por ai...
- O que tem ele?
- Bem, andei fazendo um trabalho de uma semana no banco, e te digo, nunca vi ninguém ganhar tanto dinheiro... não sei nem se a Tech Pharm ganha tanto dinheiro vendendo Tymo-R, quanto eles ganham naquele banco!
- Serio?
- To te falando... então, estava lá eu, fazendo meu trabalho, quando percebi diversos furos no sistema, coisas absurdas, erros inadmissíveis para uma empresa daquelas. Como eu posso te dizer... Nestor, é muito fácil roubar do banco.
- Era só o que me faltava!
- Cara, é sério, é muita grana, e ta de barbada, só esperando a gente! Eu tenho tudo articulado, eu só preciso que você vá junto comigo e me espere no carro com ele ligado, também vou precisar do teu capacete Oxpod, já que o meu está manjado.
- Mas isso é muito perigoso, se formos pegos é arrependimento na certa!
- Não tem como ser pego, eu to falando!
- E se dá uma pane?
- Pane?! A gente vive numa pane! Vai fazer o que Leonel? Vai ficar a vida inteira trancado em casa pra não se arrepender?! Um dia você irá se arrepender de ter ficado trancado em casa, não tem saída!

Leonel pensou por alguns segundos, mas o medo foi mais forte.

- Eu não posso, me desculpa, mas eu não posso...
- Tudo bem, entendo... mas ao menos você pode me emprestar o teu Oxpod? Te entrego na seqüência.
- Tudo bem, deixe-me o teu ai, caso eu tenha que sair...
- Se tiver que sair, irá se surpreender, como este capacete chama a atenção na rua – mais um ataque de risada sem graça.
- Não é pra menos, com essa cor...

Nestor saiu com o Oxpod branco, velho capacete de Leonel.
Na tv, nova lista de celebridades mortas na semana. A cada dia ficava mais difícil encontrar um programa bom na televisão, já que os que ousavam fazer algo descente, acabavam se arrependendo na hora de buscar apoiadores. Leonel desligou a tv e foi dormir. Uma semana depois. Toca a campainha, é um rapaz com um Oxpod amarelo, funcionário dos Correios (pois é, ano de 2080 e os imbecis dos Correios ainda não haviam aderido a maquina de tele-transporte), ele entrega uma caixa para Leonel. Um sedex internacional, direto da Austrália. No bilhete em anexo dizia: Grande amigo Leonel, lembra do meu plano? Deu tudo certo! Estou aqui, muito feliz! E rico! Hehehe! Pensa que esqueci de você? Nunca esqueço dos amigos! Estou te enviando o teu Oxpod, foi muito útil, valeu mesmo! Pode ficar com o meu, consegui outro da mesma cor aqui. Grato por tudo, Nestor. Ao abrir a caixa, Leonel encontrou o seu capacete branco, soterrado por farelos de isopor. Andou pela casa carregando o aparelho na mão, largou sobre o piano e encheu um copo de whisky, sentou-se no sofá e ficou a observar o Oxpod. Pensou na oportunidade que havia deixado passar, poderia ter enriquecido em menos de duas semanas, quanto dinheiro havia perdido porque tinha medo de um provável arrependimento, começou a sentir uma pequena falta de ar. Baixou os olhos um pouco abaixo do capacete e observou o piano, lembrou então do passado, em todos os anos que passou dedicando-se aquele instrumento, de todas as besteiras que fez em busca do sonho de um dia ser um músico famoso, da faculdade de PNLD que ele havia abandonado pra ir tocar piano em Lisboa, e que hoje poderia estar formado, certamente seria um sócio de Marenco na clínica ou no banco... a falta de ar aumentou consideravelmente... Leonel correu em direção do armário, abriu a gaveta dos medicamentos, pegou o frasco de Tymo-R e encontrou apenas 2 comprimidos, o que não seria suficiente nem para combater um arrependimento, muito menos, vários. Ele tomou os dois comprimidos, verificou bem pra ver se não havia outro frasco, constatando que não, arrependeu-se de não ter comprado mais, na última vez que esteve na farmácia... ficou tonto, caiu no chão, precisava chegar até o teleweb e ligar para o serviço de web-entrega, rastejou até o aparelho, então lembrou que o número do serviço estava em um ima de renger ice (antiga geladeira) lá na cozinha, arrependeu-se de não ter decorado o número, rastejou até a porta da renger, decorou os 12 dígitos e voltou até o aparelho teleweb, clicou no botão “iniciar” e digitou os números, então ouviu a mensagem da empresa servidora, avisando que seria impossível completar a ligação enquanto não fosse pago a conta do serviço que estava em atraso... arrependeu-se de não ter pago a conta do teleweb. Percebendo que não havia muito tempo de vida, ficou ali no chão, deitado em posição fetal, fazendo uma retrospectiva de sua vida... arrependeu-se de tudo que havia vivido até o momento, tudo que deixou de fazer com medo de se arrepender... de não ter concluído a faculdade, de ter se dedicado apenas a música, de não ter vendido o piano e torrado a grana num puteiro de luxo, de não ter aceitado a proposta de Nestor, de não ter comprado mais Tymo-R, de não ter decorado o número da tele-entrega, de não ter pago a conta do teleweb e do que fez com a linda e meiga Rebeca... arrependeu-se do fundo do coração, no exato momento em que o mesmo parou para sempre. E morto, arrependeu-se de morrer.